quinta-feira, 23 de setembro de 2010

breve história de um lenhador

Nas manhãs mornas, Solidônio tinha seu enorme prazer garantido, acendia o fogo e colocava a velha chaleira para ferver, sentia o cheiro do café estendendo-se pelo ar, deixava o cão entrar - um vira-lata marrom de meia-idade - e dava-lhe comida. Tudo que lhe vinha a mente era amainado por essas simples sensações, numa vida básica de se viver.
Cedo, começava a limpeza, pegando roupas pelo caminho, varrendo sob a cama vazia, os pratos sob a água fresca da torneira, não lustrosa, mas conservada. A casa não ostentava, nem seus moradores, o cão mal negava sua origem boêmia das ruas, era limpo e bem cuidado, mas simples, como um cão deve ser. O homem da casa era rústico, porém cortês, bem instruído, ainda que de uma defasada formação escolar - ali tudo se continha, mesmo para quem viesse de longe, como um estranho em terras estrangeiras jamais visitadas até então, notaria que o lar era parcimonioso, mas completamente alinhado, consonante com o que portava. Com alguns anos, formavam a visão completa de um lar, como se não houvesse o que preencher para se tornar inteiro.
Toda manhã, Solidônio saia para trabalhar, machado em mão, chapéu e lenço. Gostava de, caminhando, conversar com os pássaros e ouvir suas notícias distantes, para perceber que o pouco lhe bastava, como as aves voando sem direção atrás do sol, dos frutos caídos, de uma lufada.

- Vou viver como os pássaros, dizia.

E ele foi.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

diálogo perdido

- Apenas saiba que eu nunca digo o que tenho em mente, eu vou sorrir, acenar com a cabeça, talvez diga algo divertido e tente descontrair, mas não vou me abrir. Não sairá uma palavra do que penso, está tudo preso. Não é medo de me expor, já pensei sobre o assunto, não... não é isso. É individualismo mascarado, egoísmo maquiado, não consigo suportar a ideia de que mais alguém, além de mim, saiba o que sinto, penso ou acredito verdadeiramente. Eu despisto, não falo abertamente, planto evidências erradas para que se percam quando tentarem cativar-me, jogo as migalhas de pão pela trilha que leva ao desfiladeiro, percam-se - que morram ao meu encalço. Não vou me delatar, não vou discursar, só eu vou saber do que sei sobre o que penso ser; pensamentos sem companhia, o conceito transitando sozinho sem teoria. Vou me fechar, excluir-me e anular.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

reconstituição

Foi no cair da noite, ele buscou o whisky, bebeu e chorou. Nem tão no fundo, sabia bem o que aconteceria, os minutos afundavam como pedra no seio da penumbra, a luz da luminária tocava fragilmente os cantos apartados - no chão, papéis, cartas, documentos. As distâncias dos anos maiores que os quilômetros, a distância no coração sempre a maior dentre as outras. Faminto, tentava alimentar-se sobre velhas manias e ideias falsas, comer o papel rasgado com palavras sobrecarregadas de tinta e rancor, nada lhe enchia o desejo nem o ânimo. Já enxergava a morte nos textos escritos, nas bulas, nas propagandas insistentes, na mensagem escorrendo pelas caixas do rádio.
Não muito certo das pistas que devia seguir e das que devia queimar, reunia as provas do crime ao seu redor, com a arma fumegante em mãos, pronto para matar, eternamente à espera de liberdade, preso naquele quarto tépido. Criou paradigmas para se encaixar, tão fora do espectro da história, não tinha as medidas das roupas que o vestia. Buscou concretizar em si e ser o bastante, o frágil ser humano que se erguia naquele apartamento amarelado esboçava a figura de um homem- mas os segundos mataram suas melhores horas.
Ele temia e sabia o que temia, olhava o relógio, esperava. Viam-no beijando o cadafalso para aceitar seu destino, resignado. Envelhecera.

sábado, 18 de setembro de 2010

carta aberta

E por tantas vezes, criei mil ardis para você cair, entrei no seu jogo e tentei me achar, acho que me perdi. Gastei meu tempo puxando o anzol errado e vi você fugindo, pequeno bateau. Ficamos correndo em círculos ao redor das coisas que sabíamos que jamais seriam, mas foi divertido, não foi? Foi tão desgastante que com o tempo nosso cansaço superava nossa vontade de falar, e assim ficávamos em silêncio profundo, você se fingindo de morta, sumindo aos poucos, eu tentando crer na normalidade desta ausência forjada. E nada do que dizíamos era falso, não havia conflitos, estávamos calmos e pacíficos, prontos para o abate. Mas você sempre foi a predadora, no fim, eu era a lebre no buraco mal cavado sem provisões para o inverno - sou tão patético. Quando você acenou com a última palavra, achei graça, tanta falta de amor, falta de brigas, nenhum ciúme, nenhuma palavra atravessada, penso que nos poupamos demais. Agora, o que me vem é só o desejo fálico de uma saudade específica e nominável.
Só quero te lembrar: tem algumas coisas minhas com você, quando posso passar por aí?

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

desconstrução

Os orgãos palpitantes: o coração, que não bate, maquina, com a precisão analógica; o pulmão enegrecido carregado de carvão e monóxidos, uma caldeira arfante; o óleo refinado, pesado, correndo artéria abaixo; a língua é apenas outra seta venenosa, um turgor ofídico; os olhos vítreos, a mente sílica, conectada; ouvido microfônico. A rotina de relógio que controla movimento e direção, cada passo: marca-passo; sentimentos programados, pré-fabricados, pensamentos extrusados, momentos dosados e medidos, vivências homeopáticas - a vida em conta-gotas.

domingo, 12 de setembro de 2010

distâncias

No parque, antes dos ponteiros marcarem 10 horas, o silêncio corria com a brisa. No banco, daquele tipo de madeira antigo mas sempre bem envernizado, mãos sobre os joelhos, óculos e cabelos pinçados num feixe, a menina observava. Atenta para as árvores donde vinham e iam os pássaros, cada vôo registrado pelo olhar estático; fugaz, o vento seguia as asas, mas a perseguição perdia-se, em certos momentos não se sabia quem estava atrás de quem, as folhas, galhos e arbustos farfalhavam com as passagens.
Quando alguém tentava cortar o silêncio dilatado e tenaz, sempre ouvia o mesmo eco, como um disco arranhado:

- Eu gosto dos pássaros, isso é tudo que precisa saber.

E das dez coisas mais difíceis, uma delas que aprendi foi com essa menina, a arte tão truncada de criar laços.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

nublado

Eram dois, o casal, o marido entrou pela porta de madeira, atrás vinha a mulher com algumas sacolas. Em Pembroke, a neve lá fora encobria o mundo e nada era visível.
Há tempos tudo era distância e dois estranhos viviam na casa, depois de tanto tempo, esqueceram-se de si mesmos, um do outro. Moravam juntos, mas não viviam juntos. Comiam na mesma mesa, assistiam a TV aos domingos, despiam-se diante da cama, sem nada a dizer. Semanas após semanas, o silêncio era cada vez mais denso e impenetrável, a atmosfera pesada das palavras não ditas, a convivência transformada no pétreo sentido da indiferença.

- O tempo está cada dia pior. Parece que vai nevar ainda mais essa semana. - arriscou-se a mulher insípida.

- Não é o frio lá fora que me preocupa. - rebateu o marido sem emoção, enquanto tentava arrumar uma estante na parede.

Tudo era frio e vento soprando, fora ou dentro.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

simples

Talvez, de tudo o que se busca, pouco valha o esforço; ou me engano e tudo seja válido. Cada vez mais vê-se grandes esforços e sacrifícios seguidos do vazio de seu propósito, em prol de valores e matérias dispensáveis, como este labor consome o praticante, fulminando-o até sua aposentadoria e seu fim de carreira. Realização pessoal é relativa, mas penso nela como enxergo a simplicidade nas coisas - quando vasculho meus dias, sempre encontro nos momentos menores e pequenos, minha felicidade.
Por que devemos construir castelos para contemplar uma alegria, quando o fruto de toda satisfação será o banquete? Importante é preencher o tempo, não adorná-lo - o enfeite encanta a vaidade e os olhos, mas não enche a barriga, não nos faz satisfeitos. Assim, desejar as coisas com conteúdo, com propósito, com objetivo, um labor que nos faça inteiros a cada instante de sua feitura.