terça-feira, 14 de dezembro de 2010

1989

Com muitas mãos agarrando pedras, escavando a terra para sepultar os trechos e as passagens dos caminhos até aqui. Após vinte e dois anos, atingimos o auge de nossas loucuras, estar no topo é estar em perigo, esta foi a paranóia pregada nas salas e nos corredores institucionais da vida. Somos as criaturas vis que ousam matar o próprio criador, com desculpas para cada lacuna nos argumentos, caçando e pilhando até a poeira da estrada.
A herança que herdamos permanece intacta, mirrada e bem escondida nos arbustos incongruentes da mata-virgem. O corte da faca. As intenções afiadas. Os livros cativos onde as informações queremos ocultar. É uma palavra ingênua contra um insulto deslavado, é uma pequena mácula frente a toda malícia cultivada a partir de obscenidades irrelatadas. A obra-prima de gerações e maturações, somos filhos mimados e filhos anônimos, vestimos a carapuça feita sob medida por décadas de antecipação e expectativas patéticas: o homem que foi à Lua, o homem que criou o tempo, o homem que reinventou o homem. Quisemos crescer para tornarmo-nos piores, fazer jus a essas audácias que são aperitivos para os ímpetos desenfreados, outorgar-nos deuses a nossa imagem e semelhança, mas com os anos, as figuras serão apenas as caricaturas das dissimulações mais sinceras e das paixões mais caídas que encontrarmos para enfeitar a casa. Faz tempo, o espantalho foi desmascarado e a gentileza deixou o barco de vez.
Não somos fáceis, e sabemos dançar num pé só, na corda esticada sobre o desfiladeiro.

domingo, 7 de novembro de 2010

os anos e as cidades

Vi o dia nascendo e subindo em chamas pelo rio impuro da cidade, uma cobra sorrateira serpenteia, os acúmulos de restos espalhados na superfície da beleza morta, que era selvagem, agora trancafiada no calabouço com argamassa. Os raios do dia trouxeram os jornais, dentro de cada um, uma notícia inexata das palavras que rondam as calçadas e os porões dos prostíbulos que todo patife anseia conhecer. Nos trens e metrôs, tantas vidas se entrelaçam, só aparentemente, num instante moroso de calor inconveniente, num aperto inconsolado no caminho entre-estações; nas chegadas, multidões escorregam até as escadas pelas plataformas úmidas, como ratos que patinham pelas calhas, um bolo de roupas e carne, um odor aqui, outro ali, rostos tão lânguidos, tão indecifráveis.
O sol escorre e transcorre pela vísceras dos edifícios supervalorizados, em locais tão caros de se viver, que se escolhe morar ou ter café-da-manhã. Esta era a cidade amada, que agora jorra teores pérfidos e alusões de grandezas desencontradas, que nos faz prisioneiros de uma guerra sacra em nome dos valores outorgados por mãos polutas, os abutres em arranha-céus e seu grande poder contra a auto-estima do homem comum, come-lhes as vontades lassas tal como fígados abertos dos animais da estrada. E de tantas aglomerações, as filas por de trás dos vidros fundidos dos bancos e lanchonetes, a vida é uma espera, uma espera extenuante entre sábados e feriados. A manhã vem aí, tingindo o concreto rachado ornado de bitucas e das sobras do banquete noturno, nascendo novamente, porém com ela nada de novo; a capital do esquecimento olvidou a si mesma e o que sobrou não bastou - não bastou para saciar a fome das bocas que expelem seu nome cinzento e dissaboroso, o paradoxo que colapsa sobre a própria cauda - quimera, teu nome é cidade!

terça-feira, 2 de novembro de 2010

humores

Já havia passado dias inexpugnáveis lendo palavras azedas nos livros, em sua maioria tristonhos e um pouco lascivos. Não havia o que ser feito, esperava pela verdade atrás da porta, decidi quebrar a parede e ver o tijolo nu, o pó escalando o ar do cômodo iluminado no fim da tarde, um sol de setembro entrelaçava-se com as migalhas das rachaduras, minha mulher deve ter ouvido o barulho estrondoso.

- Que foi isso aí em cima?

Nada, fique quieta, estou tentando enxergar enquanto penso, pensar enquanto vejo, e não posso lhe ouvir ao mesmo tempo que tento abraçar o mundo. Fique quieta, sim. A realidade ia acontecendo nos meus pensamentos conforme eu caminhava para entendê-los, e compreender também por que havia feito o buraco. Tentei ver o que havia na outra sala, era o escritório, o computador e a escrivaninha tinham um ar pesaroso naquela atmosfera apagada, quase sem iluminação, a única que chegava era a que passava pelo rombo. Notei como aquele feriado em casa estava me prendendo ali, a forma como me tornava inerte e sem ambições conforme ansiava por uma vida mais pacata dentro do lar. Não queria mais essa solidão esporádica, um pouco com a mulher, um pouco no quarto. Eu deveria sair, ir beber nos bares e cair sobre as poças das chuvas que varrem os miseráveis e patifes, meu espírito sussurrava a mim que fosse buscar o veneno fresco em forma de cicuta sobre a relva orvalhada, mas antes eu escreveria um ensaio para divagar sobre as questões que atormentam qualquer humano, coisas como felicidade, culpa, incompletitude e a falta de sexo nos sábados à noite. Eu contornaria meus próprios problemas, como o devedor astuto que por muitas vezes fugiu do agiota, encolhendo-se e correndo. Mas então, agora, devo caçar os corvos e dançar com as raposas, que também intento caçar, tudo que caminhar e respirar será presa para mim e essa língua afiada, é um sentimento agudo que sinto quando penso na mudança que tenho que fazer para me tornar glorioso, redirecionar as rotas e os ventos e rezar para que sejam o bastante. Talvez devesse começar tudo de novo. Do ponto de partida. Peguei o martelo, vou subir a montanha e destruir meu criador, verei se dele sai algum novo caráter mais apresentável, preciso de algo para o baile de gala, uma aparência que transcreva a loucura que me tornei.

sábado, 30 de outubro de 2010

décima primeira hora

A noite passou lentamente após os primeiros sinais do estranho som atrás da porta de entrada, na sala um pequeno silêncio amontoava-se nas quinas da parede, com o relógio da cozinha contando a décima primeira hora lúgubre, a da noite, os carros pareciam tão distantes na rua que o ruído das engrenagens soava como se estivesse movendo-se para longe no céu noturno. A própria essência da casa estava alinhada com as propensões do instante, já nenhum corpo caminhava, eu estava no sofá atento a qualquer ação que se desenrolasse, o barulhinho tilintando por trás da madeira, o vão da sala sob a porta guardava um breve mistério, algo ali se escondia, talvez por descuido, ou quem sabe, por emboscada. Imaginei ser uma ladrão, possivelmente um bem baixo, tentando destravar o segredo, ou um assassino que, sem perguntar, atiraria contra meu crânio pálido sob a luz frágil da lamparina. Poderia ser um bêbado que por sorte do destino veio ter seus sonhos ébrios na fachada de casas desconhecidas, o cheiro de álcool seria inconfundível, podia até conceber sua barba grisalha um pouco molhada de rum, esparramada no concreto. Nada contrariava a opção de ser a polícia em seus distintivos sobre a farda, alguém os chamou pensando haver visto aqui a ocorrência de algum crime ultrajante, sem precedentes - mas esse pensamento sujeitava-me ao do bandido e fiquei então impassível diante da dúvida, mas torcia pela salvação, na melhor das hipóteses.
Sem quase dar alerta, num sobressalto agourento, um rato correu esgueirando-se pela soleira, foi uma visão terrível, porém aliviante, era só um roedor, nada mais, nada menos. A dúvida desfez-se e agora, pela primeira vez na noite, poderia dormir tranquilamente. Foi só um rato, no entanto, ainda, cogitei que poderia ter sido você, meu amor, ao pé da porta, pedindo para voltar, e então me perguntei por que não havia pensado nessa hipótese. Lembrei que você talvez não se sujeitasse à soleira da sala, você teria quebrado o vidro da janela e entraria sem pestanejar, provavelmente mataria-me com alguma palavra sua, daquelas bem frias como lâmina de faca. Foi um rato, mas podia ter sido você, minha querida, sim, podia ter sido você.

sábado, 16 de outubro de 2010

as fatias e as migalhas

Um fato absurdo que perambula as esquinas da realidade: 4% da população devora os outros 96%. Ainda pior, o 1% mais rico da sociedade abocanha mais de 50% do planeta. Mastiga e digere a renda, os recursos naturais, os privilégios da lei e direitos a eles outorgados exclusivamente, a educação (cada vez mais restrita a quem não pode pagar pelo valor de face), a saúde pública (apenas o coveiro está garantido, ou nem isso), o trabalho justo (este caso o Walmart tem como mister), a moradia, a liberdade em todas suas facetas - indiscriminadamente, alimenta-se dos direitos, cada vez mais básicos, das pessoas que mal tem a chance de reivindicá-los como seus.
E insistimos que tudo não se passa de uma democracia mal interpretada, é sim, uma democracia às avessas. O governo do povo tornou-se a política das portas-fechadas, do monopólio de informação, de poder de decisão acima do voto, dos resgates omissos sobre a colheita de impostos e de pagamentos enviados para a aposentadoria que não tarda, mas a dignidade tarda, dos esquemas truncados para recolhimento de verbas não endereçadas previamente; além da completa falta de impunidade que solapa a ética que os senhores destes mecanismos democráticos mesmo pregam, mas é uma teia tão bem costurada, todos prendem-se a ela, no entanto, as moscas não se soltam. O que estamos presenciando é alguma espécie de oferenda ritualística, e não fomos convidados para a festa, aliás, são claramente nossas cabeças postas à mesa, nos salões das grandes corporações, servidas ao molho chutney e com um vinho de Maipo safra 98. Belíssima combinação, afinal - só me preocupa o sutil descabimento desta história, tão sutil quanto uma tropa de cavalos num concerto de Vivaldi.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

longitude

Nesses dias indefinidos de frio e garoa frouxa batendo na janela, vem a vontade de colocar velhos planos de fuga em prática, entrar no carro e dirigir sem grandes ambições, nem precisão exata. Talvez para o sul, pelas serras e pradarias; para os rios que se encontram e as cataratas, num rugido de águas; cruzar fronteiras, através dos pampas e plantações sob correntes de vento do pacífico, acima dos Andes, na austeridade gélida imóvel, que assoma à vista das cidades próximas. Então, descer, descer, até que o deserto esteja à frente e o mundo às costas, entre os arbustos nas minas de sal a céu aberto, para a terra do fogo, na comunhão das divisas da América do Sul, no encontro das ondas do tempo remoto, quebrando-se contra a margem continental; além do frio austral que arrefece as marés soturnas e embota os ciclos regionais, no berço de neve da América.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

entorno

Atrás da vidraça empoeirada pelo vento da última manhã, que, hoje, nas ruas arrastava as folhas secas do último verão, eu a vi em seu movimento solitário, num pequeno vôo com um vestido tão solto que senti vontade de segurá-lo em torno do corpo esbelto para que não esvoaçasse tanto. As mãos que encaminhavam frutas à cesta, perto do jornaleiro, na banca do verdureiro, eram finas e pareciam macias, colhendo o café-da-manhã no pomar da cidade. Eu bebia um copo de café e a olhava, sentado sobre a escrivaninha, esperando a ordem dos acontecimentos sucederem maiores expectativas. Mas quando a vi chegando nos seus pés em sandálias, que tocavam fracamente o chão ríspido, parei de prestar atenção às horas e o que quer que seja que estivesse aguardando. Um ar de troça infantil e malícia quimérica misturavam-se em seu sorriso farto, com delicadeza insultuosa marcava as frases das conversas que tinha com as senhoras sentadas nas escadas dos condomínios. Inebriante sua forma no tempo, o espaço que ocupava ganhava ares de opulência. Ah, e como era imperfeita!, Deus, quanta imperfeição pode haver nos gestos de uma mulher? Nela inscrevia-se a essência do que a fazia inteira e imperfeita, além de todas as outras que por ali passavam no mesmo instante - a mulher irrepreensível nos pormenores e, também, nos grandes pedaços que a completavam em tudo que era.
Ali, sentado à janela, olhando-a, quase inerte, quase sem piscar, num ato de pegar o copo sobre a mesa, que equiparado a qualquer outro dela era beligerante e atroz, eu me imaginava em uma vida lá fora, caminhando atrás dela, contra o vento e os papéis que adejavam no ar - uma vida unida a minha. Uma troca de olhar, um riso disfarçado, a conversa hesitante e, então, o convite. Daí em diante, as cores seriam novas, iríamos ao cinema, veríamos algum romance, alguma comédia, conversaríamos no café, eu a levaria até à porta de casa, e num gesto de despedida, nos beijaríamos. Encontraríamos-nos por cem vezes, depois mais cem, juntos em viagens para lugares que o desejo nos faria conhecer, as palavras à noite sob o cobertor, carinho, sexo, a confiança mútua, a proposta, o noivado, o casamento, filhos, uma casa, um cão, contas para pagar, compromissos, discussões, perdão, reconciliações; o dia-a-dia ao lado da mulher que amaria, até que a loucura viesse, ou a velhice sobrepujasse, e nos tomasse, em assalto, inteiramente. Numa descarga de segundos, pensei nessas tantas cenas como fotos viradas num álbum muito grande, porém exibido como num curtametragem, tão veloz, que os olhos, ao se fecharem e abrirem-se novamente, vislumbrariam apenas "o fim" na tela escura.
Passei a vista pela rua, após esse pequeno lapso de consciência, e ela já estava tão longe em seu caminho, virava a esquina da feira para se perder de mim, e do meu pensamento distante, onde ela também já se perdera. Escutei os passos no corredor, e isso me causou uma certa expectativa, não era ninguém. A manhã nublada seguia seu ritmo aprazível, com tumultos de gente pululando pelas curvas, aves gorjeando, o velho levando seu cão para passear; na calçada, do outro lado, um grupo de meninas de cabelos presos passou e fez graça a outro bando de meninos colegiais - essa era a mesma cidade em que carros passavam com indiferença ao grito das mães chamando os filhos para o almoço, enquanto o sinal da escola zunia convocando crianças para as classes bolorentas; os passos da gente no concreto mal acabado que levavam para lugares tão estranhos a mim: no meio fio, nos botecos, nas linhas de metrô, em escadas para qualquer entrada, ao fim do dia, as luzes podiam acender novos humores.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

herança

- Não olhe agora, mas se tentar ver o jardim pela janela, vai enxergar as mãos embrutecidas que colhem as rosas.

E quando ouvir a batida seca na porta, vai ser alguém trazendo um presente que você não quer aceitar, mas já sabe, não se pode negar uma ou duas cortesias, por compaixão, simpatia ou um pouco de baboseira. Logo irá perceber como o caule é uma mentira, as folhas não respiram, estancadas pelos plásticos airosos de supermercado, no ponto mais frágil, a pétala resvala moribunda, vermelho pálido, murchando à vista das crianças na calçada - elas não sabem, no entanto, é nítida a solenidade do momento, nada pode negar esse ritual. Tão longe do solo, desperdiçada sua atenção, a raíz é um voto quebrado, a promessa partida por um gesto leviano, que levou consigo um bocado de esperança e não trouxe mais nada de fértil.
As cartas que chegam sob a porta são deixadas pelas mãos secas do homem-comum, lavram os textos do papel e os jogam para perdê-los nas bolsas de couro viajantes, ao encalço das caixas metálicas depositárias. Me dê uma pitada desse ânimo que você põe na voz ao falar a respeito da sua auto-estima, que eu lhe mostro o rancor escondido por anos e anos em cada fresta das paredes de um lar. Ao ler as palavras, é perceptível a ameaça que trazem consigo, elas ainda vão derrubar a casa de dentro para fora, com os moradores aqui. A culpa depositada pelos cantos ruirá sobre nossas cabeças, para que então a casa se torne um naufrágio, sepultando-nos sob a água e sob os medos, de um lar de uma família inconsumada. E o que haverá para ser dito uns aos outros será silêncio.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

ltda

Eu vivo a metodologia dos tubarões, com uma gravata de fibra de carbono e um aperto de mão eletrônico, ainda assim há compaixão na minha voz quando falo sobre liquidez e especulação. Quando você perguntar sobre mim, não pergunte sobre mim, vamos falar sobre meu portfólio, que está em alta, com mais ações no mercado de capitais, eu abri uma nova franquia, remodelei as estratégias para maior rentabilidade, refiz a maior parte das metas para encaixar na anual. Vou explicar um pouco sobre minha vida, veja, e aprenda, como ajustar lucros e pagar menos impostos, esse é o caminho, um caminhão de dólares - a tarifação alfandegária está cada vez mais abusiva, vou lhe mostrar a dedução contábil, que é o método dos lagartos. Já lhe falei das minhas virtudes? Acompanhe como faço esse cálculo bater, os juros estão estipulados, mas repare como eu posso colocar um adicional a curto prazo, pronto!, os valores futuros estão ajustados, é só esperar pela receita no balanço. Não perca essa chance. Entre no meu quarto, olhe o armário cheio de parafernálias, que não sei onde vou usar, mas saíram pelo melhor custo, você sempre pode pechinchar, o segredo é sempre agradar os acionistas, você sempre pode comprar mais, tudo de última geração: LED high definition digital smartphone wireless. Se você tentar seguir o meu conselho, me dê um feedback, vamos fazer um brainstorming para projetos inovadores, teremos um canal com o consumidor, realizar auditorias e criar vários processos em rede, seremos os melhores amigos de emails internos, vamos crescer juntos, 40% ao ano.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

divisas

Já prepara a cara de pedir favor, pois acho que estou prestes a ouvir você chamar os cachorros de volta, que eram nossos, agora é meu e seu, cada coisa repartida sem segredo, no entanto escancarada para ser deduzida pelos contadores e advogados. Quando apagar a luz, a gente sabe que está sozinho no escuro, e isso eu não tenho que dividir mais, nem essa sensação do sopro que entra por debaixo da coberta, pela fresta que deixei aberta; não, nada disso vai ser esmigalhado.
Certa vez, quando assobiávamos o mesmo barulho, chegamos a dividir as mesmas palavras, e agora até elas estão em malas diferentes, separadas com etiquetas onde se inscrevem nomes remarcados por um tipo de estranheza, assim, quando se olha para algo que não se pode compreender, porém só se pode olhar e acenar com a cabeça concordante.
Preto, branco, verde, branco, vermelho, branco, azul - as meias da gaveta com as cartas por baixo, que serão recordadas e guardadas por um tempo, até que o esquecimento carregue-as para algum incêndio. Hoje, o que se acaba tende à guerra, pilhar e fazer espólios até do amor, da amizade, e de sentidos ainda menores.
Não me interprete mal, quando olhei, enxerguei com meus olhos, não com os seus, então não se engane, não sou tão condescendente assim; vejo as arestas que você tentou podar, o corte profundo nos dedos que deixaram sua marca. Como posso acreditar que por trás de um rosto tão encardido há um sorriso perdido, que não existe mais, mas que foi verdade alguma vez, num bar ou de frente para uma vitrine?

sábado, 2 de outubro de 2010

metalinguagem

Dias a fio, nada à mente. Como se esperar por um feixe de nova inspiração? É tudo sem alocação, os pensamentos maream indefinidamente, as ideias não crescem longe de qualquer sol. O que tento gritar, apaga a voz rouca, e vejo como tudo está perdido, pelo menos por enquanto. Ao escrever, saem-me os borrões, palavra grotesca, sem afago, sem ódio, é somente banalidade mal escrita. Não é falta do que ter o que dizer, pois isso sei que há muito, vejo que é o não saber como escrever, melhores modos de trazer a língua ao papel, cuspir as linhas em sua ordem correta de forma que soem como a frase soa no crânio - a sentença perfeita, não a disforme que consigo escrever. E quantos não são estes miseráveis que carregam um livro no peito, e que não podem ditá-lo às mãos? Ah, isso é também o que nos faz desfeitos.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

breve história de um lenhador

Nas manhãs mornas, Solidônio tinha seu enorme prazer garantido, acendia o fogo e colocava a velha chaleira para ferver, sentia o cheiro do café estendendo-se pelo ar, deixava o cão entrar - um vira-lata marrom de meia-idade - e dava-lhe comida. Tudo que lhe vinha a mente era amainado por essas simples sensações, numa vida básica de se viver.
Cedo, começava a limpeza, pegando roupas pelo caminho, varrendo sob a cama vazia, os pratos sob a água fresca da torneira, não lustrosa, mas conservada. A casa não ostentava, nem seus moradores, o cão mal negava sua origem boêmia das ruas, era limpo e bem cuidado, mas simples, como um cão deve ser. O homem da casa era rústico, porém cortês, bem instruído, ainda que de uma defasada formação escolar - ali tudo se continha, mesmo para quem viesse de longe, como um estranho em terras estrangeiras jamais visitadas até então, notaria que o lar era parcimonioso, mas completamente alinhado, consonante com o que portava. Com alguns anos, formavam a visão completa de um lar, como se não houvesse o que preencher para se tornar inteiro.
Toda manhã, Solidônio saia para trabalhar, machado em mão, chapéu e lenço. Gostava de, caminhando, conversar com os pássaros e ouvir suas notícias distantes, para perceber que o pouco lhe bastava, como as aves voando sem direção atrás do sol, dos frutos caídos, de uma lufada.

- Vou viver como os pássaros, dizia.

E ele foi.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

diálogo perdido

- Apenas saiba que eu nunca digo o que tenho em mente, eu vou sorrir, acenar com a cabeça, talvez diga algo divertido e tente descontrair, mas não vou me abrir. Não sairá uma palavra do que penso, está tudo preso. Não é medo de me expor, já pensei sobre o assunto, não... não é isso. É individualismo mascarado, egoísmo maquiado, não consigo suportar a ideia de que mais alguém, além de mim, saiba o que sinto, penso ou acredito verdadeiramente. Eu despisto, não falo abertamente, planto evidências erradas para que se percam quando tentarem cativar-me, jogo as migalhas de pão pela trilha que leva ao desfiladeiro, percam-se - que morram ao meu encalço. Não vou me delatar, não vou discursar, só eu vou saber do que sei sobre o que penso ser; pensamentos sem companhia, o conceito transitando sozinho sem teoria. Vou me fechar, excluir-me e anular.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

reconstituição

Foi no cair da noite, ele buscou o whisky, bebeu e chorou. Nem tão no fundo, sabia bem o que aconteceria, os minutos afundavam como pedra no seio da penumbra, a luz da luminária tocava fragilmente os cantos apartados - no chão, papéis, cartas, documentos. As distâncias dos anos maiores que os quilômetros, a distância no coração sempre a maior dentre as outras. Faminto, tentava alimentar-se sobre velhas manias e ideias falsas, comer o papel rasgado com palavras sobrecarregadas de tinta e rancor, nada lhe enchia o desejo nem o ânimo. Já enxergava a morte nos textos escritos, nas bulas, nas propagandas insistentes, na mensagem escorrendo pelas caixas do rádio.
Não muito certo das pistas que devia seguir e das que devia queimar, reunia as provas do crime ao seu redor, com a arma fumegante em mãos, pronto para matar, eternamente à espera de liberdade, preso naquele quarto tépido. Criou paradigmas para se encaixar, tão fora do espectro da história, não tinha as medidas das roupas que o vestia. Buscou concretizar em si e ser o bastante, o frágil ser humano que se erguia naquele apartamento amarelado esboçava a figura de um homem- mas os segundos mataram suas melhores horas.
Ele temia e sabia o que temia, olhava o relógio, esperava. Viam-no beijando o cadafalso para aceitar seu destino, resignado. Envelhecera.

sábado, 18 de setembro de 2010

carta aberta

E por tantas vezes, criei mil ardis para você cair, entrei no seu jogo e tentei me achar, acho que me perdi. Gastei meu tempo puxando o anzol errado e vi você fugindo, pequeno bateau. Ficamos correndo em círculos ao redor das coisas que sabíamos que jamais seriam, mas foi divertido, não foi? Foi tão desgastante que com o tempo nosso cansaço superava nossa vontade de falar, e assim ficávamos em silêncio profundo, você se fingindo de morta, sumindo aos poucos, eu tentando crer na normalidade desta ausência forjada. E nada do que dizíamos era falso, não havia conflitos, estávamos calmos e pacíficos, prontos para o abate. Mas você sempre foi a predadora, no fim, eu era a lebre no buraco mal cavado sem provisões para o inverno - sou tão patético. Quando você acenou com a última palavra, achei graça, tanta falta de amor, falta de brigas, nenhum ciúme, nenhuma palavra atravessada, penso que nos poupamos demais. Agora, o que me vem é só o desejo fálico de uma saudade específica e nominável.
Só quero te lembrar: tem algumas coisas minhas com você, quando posso passar por aí?

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

desconstrução

Os orgãos palpitantes: o coração, que não bate, maquina, com a precisão analógica; o pulmão enegrecido carregado de carvão e monóxidos, uma caldeira arfante; o óleo refinado, pesado, correndo artéria abaixo; a língua é apenas outra seta venenosa, um turgor ofídico; os olhos vítreos, a mente sílica, conectada; ouvido microfônico. A rotina de relógio que controla movimento e direção, cada passo: marca-passo; sentimentos programados, pré-fabricados, pensamentos extrusados, momentos dosados e medidos, vivências homeopáticas - a vida em conta-gotas.

domingo, 12 de setembro de 2010

distâncias

No parque, antes dos ponteiros marcarem 10 horas, o silêncio corria com a brisa. No banco, daquele tipo de madeira antigo mas sempre bem envernizado, mãos sobre os joelhos, óculos e cabelos pinçados num feixe, a menina observava. Atenta para as árvores donde vinham e iam os pássaros, cada vôo registrado pelo olhar estático; fugaz, o vento seguia as asas, mas a perseguição perdia-se, em certos momentos não se sabia quem estava atrás de quem, as folhas, galhos e arbustos farfalhavam com as passagens.
Quando alguém tentava cortar o silêncio dilatado e tenaz, sempre ouvia o mesmo eco, como um disco arranhado:

- Eu gosto dos pássaros, isso é tudo que precisa saber.

E das dez coisas mais difíceis, uma delas que aprendi foi com essa menina, a arte tão truncada de criar laços.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

nublado

Eram dois, o casal, o marido entrou pela porta de madeira, atrás vinha a mulher com algumas sacolas. Em Pembroke, a neve lá fora encobria o mundo e nada era visível.
Há tempos tudo era distância e dois estranhos viviam na casa, depois de tanto tempo, esqueceram-se de si mesmos, um do outro. Moravam juntos, mas não viviam juntos. Comiam na mesma mesa, assistiam a TV aos domingos, despiam-se diante da cama, sem nada a dizer. Semanas após semanas, o silêncio era cada vez mais denso e impenetrável, a atmosfera pesada das palavras não ditas, a convivência transformada no pétreo sentido da indiferença.

- O tempo está cada dia pior. Parece que vai nevar ainda mais essa semana. - arriscou-se a mulher insípida.

- Não é o frio lá fora que me preocupa. - rebateu o marido sem emoção, enquanto tentava arrumar uma estante na parede.

Tudo era frio e vento soprando, fora ou dentro.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

simples

Talvez, de tudo o que se busca, pouco valha o esforço; ou me engano e tudo seja válido. Cada vez mais vê-se grandes esforços e sacrifícios seguidos do vazio de seu propósito, em prol de valores e matérias dispensáveis, como este labor consome o praticante, fulminando-o até sua aposentadoria e seu fim de carreira. Realização pessoal é relativa, mas penso nela como enxergo a simplicidade nas coisas - quando vasculho meus dias, sempre encontro nos momentos menores e pequenos, minha felicidade.
Por que devemos construir castelos para contemplar uma alegria, quando o fruto de toda satisfação será o banquete? Importante é preencher o tempo, não adorná-lo - o enfeite encanta a vaidade e os olhos, mas não enche a barriga, não nos faz satisfeitos. Assim, desejar as coisas com conteúdo, com propósito, com objetivo, um labor que nos faça inteiros a cada instante de sua feitura.