sábado, 30 de outubro de 2010

décima primeira hora

A noite passou lentamente após os primeiros sinais do estranho som atrás da porta de entrada, na sala um pequeno silêncio amontoava-se nas quinas da parede, com o relógio da cozinha contando a décima primeira hora lúgubre, a da noite, os carros pareciam tão distantes na rua que o ruído das engrenagens soava como se estivesse movendo-se para longe no céu noturno. A própria essência da casa estava alinhada com as propensões do instante, já nenhum corpo caminhava, eu estava no sofá atento a qualquer ação que se desenrolasse, o barulhinho tilintando por trás da madeira, o vão da sala sob a porta guardava um breve mistério, algo ali se escondia, talvez por descuido, ou quem sabe, por emboscada. Imaginei ser uma ladrão, possivelmente um bem baixo, tentando destravar o segredo, ou um assassino que, sem perguntar, atiraria contra meu crânio pálido sob a luz frágil da lamparina. Poderia ser um bêbado que por sorte do destino veio ter seus sonhos ébrios na fachada de casas desconhecidas, o cheiro de álcool seria inconfundível, podia até conceber sua barba grisalha um pouco molhada de rum, esparramada no concreto. Nada contrariava a opção de ser a polícia em seus distintivos sobre a farda, alguém os chamou pensando haver visto aqui a ocorrência de algum crime ultrajante, sem precedentes - mas esse pensamento sujeitava-me ao do bandido e fiquei então impassível diante da dúvida, mas torcia pela salvação, na melhor das hipóteses.
Sem quase dar alerta, num sobressalto agourento, um rato correu esgueirando-se pela soleira, foi uma visão terrível, porém aliviante, era só um roedor, nada mais, nada menos. A dúvida desfez-se e agora, pela primeira vez na noite, poderia dormir tranquilamente. Foi só um rato, no entanto, ainda, cogitei que poderia ter sido você, meu amor, ao pé da porta, pedindo para voltar, e então me perguntei por que não havia pensado nessa hipótese. Lembrei que você talvez não se sujeitasse à soleira da sala, você teria quebrado o vidro da janela e entraria sem pestanejar, provavelmente mataria-me com alguma palavra sua, daquelas bem frias como lâmina de faca. Foi um rato, mas podia ter sido você, minha querida, sim, podia ter sido você.

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