terça-feira, 8 de março de 2011

o movimento da noite

Essa noite lenta que, arrastando-se, segue firme e insisti em não dar cabo de si mesma. Os choros da crianças não amamentadas se prendem ao peito da escuridão semidilacerada; um sibilante som de aço que contorna as quinas com seu ruído de máquina, lá onde as vozes ainda se confundem nas piadas e desentendimentos - uma ninhada de cães nasceu no beco menos distante onde as músicas saem para dançar na calçada, vindas do interior do lounge. A paisagem intacta revela a idade do seu observador, sete décadas e aquele pequeno mundo havia saído do casulo e abanado asas para o poente.
Um grilo e um cigarra são coisas raras numa cidade, mas onde há arbustos há vida, e não é diferente - depois das seis, os insetos também saem para bailar no canteiro de obras imóvel, carregadeiras e escavadeiras desligadas, peões guardados na caixa. No último andar do edifício fumegado, a luz acesa indica um sinal de vida e de paz, e de guerra, nas trevas. Um trabalho segue seu fluxo às três da manhã no fechamento do mês, os telefones estão mudos e roncam com a monotonia do crocitar dos papéis. Na curvas e nos pontos onde os ônibus arrematam, o público aguarda aquela ausência antes da inauguração, vem aqueles que não dormiram ainda trocar os postos com os que, de olhos inchados, dormiram como se não tivessem. E um borrão, que já é cinco, dilui na linha deitada por trás do mármore falso: azul-escuro tingido com laranja, e fica mais claro, no azul royal o amarelo se enlaça e o azul vira turquesa, o vermelho vem beijar os lábios da realeza, o azul claro decai pálido.

Então, o sol carrega para dentro da jaula azul mais um dia neutro, um pouco mal acabado, com sabor insosso do café frio.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

1989

Com muitas mãos agarrando pedras, escavando a terra para sepultar os trechos e as passagens dos caminhos até aqui. Após vinte e dois anos, atingimos o auge de nossas loucuras, estar no topo é estar em perigo, esta foi a paranóia pregada nas salas e nos corredores institucionais da vida. Somos as criaturas vis que ousam matar o próprio criador, com desculpas para cada lacuna nos argumentos, caçando e pilhando até a poeira da estrada.
A herança que herdamos permanece intacta, mirrada e bem escondida nos arbustos incongruentes da mata-virgem. O corte da faca. As intenções afiadas. Os livros cativos onde as informações queremos ocultar. É uma palavra ingênua contra um insulto deslavado, é uma pequena mácula frente a toda malícia cultivada a partir de obscenidades irrelatadas. A obra-prima de gerações e maturações, somos filhos mimados e filhos anônimos, vestimos a carapuça feita sob medida por décadas de antecipação e expectativas patéticas: o homem que foi à Lua, o homem que criou o tempo, o homem que reinventou o homem. Quisemos crescer para tornarmo-nos piores, fazer jus a essas audácias que são aperitivos para os ímpetos desenfreados, outorgar-nos deuses a nossa imagem e semelhança, mas com os anos, as figuras serão apenas as caricaturas das dissimulações mais sinceras e das paixões mais caídas que encontrarmos para enfeitar a casa. Faz tempo, o espantalho foi desmascarado e a gentileza deixou o barco de vez.
Não somos fáceis, e sabemos dançar num pé só, na corda esticada sobre o desfiladeiro.

domingo, 7 de novembro de 2010

os anos e as cidades

Vi o dia nascendo e subindo em chamas pelo rio impuro da cidade, uma cobra sorrateira serpenteia, os acúmulos de restos espalhados na superfície da beleza morta, que era selvagem, agora trancafiada no calabouço com argamassa. Os raios do dia trouxeram os jornais, dentro de cada um, uma notícia inexata das palavras que rondam as calçadas e os porões dos prostíbulos que todo patife anseia conhecer. Nos trens e metrôs, tantas vidas se entrelaçam, só aparentemente, num instante moroso de calor inconveniente, num aperto inconsolado no caminho entre-estações; nas chegadas, multidões escorregam até as escadas pelas plataformas úmidas, como ratos que patinham pelas calhas, um bolo de roupas e carne, um odor aqui, outro ali, rostos tão lânguidos, tão indecifráveis.
O sol escorre e transcorre pela vísceras dos edifícios supervalorizados, em locais tão caros de se viver, que se escolhe morar ou ter café-da-manhã. Esta era a cidade amada, que agora jorra teores pérfidos e alusões de grandezas desencontradas, que nos faz prisioneiros de uma guerra sacra em nome dos valores outorgados por mãos polutas, os abutres em arranha-céus e seu grande poder contra a auto-estima do homem comum, come-lhes as vontades lassas tal como fígados abertos dos animais da estrada. E de tantas aglomerações, as filas por de trás dos vidros fundidos dos bancos e lanchonetes, a vida é uma espera, uma espera extenuante entre sábados e feriados. A manhã vem aí, tingindo o concreto rachado ornado de bitucas e das sobras do banquete noturno, nascendo novamente, porém com ela nada de novo; a capital do esquecimento olvidou a si mesma e o que sobrou não bastou - não bastou para saciar a fome das bocas que expelem seu nome cinzento e dissaboroso, o paradoxo que colapsa sobre a própria cauda - quimera, teu nome é cidade!

terça-feira, 2 de novembro de 2010

humores

Já havia passado dias inexpugnáveis lendo palavras azedas nos livros, em sua maioria tristonhos e um pouco lascivos. Não havia o que ser feito, esperava pela verdade atrás da porta, decidi quebrar a parede e ver o tijolo nu, o pó escalando o ar do cômodo iluminado no fim da tarde, um sol de setembro entrelaçava-se com as migalhas das rachaduras, minha mulher deve ter ouvido o barulho estrondoso.

- Que foi isso aí em cima?

Nada, fique quieta, estou tentando enxergar enquanto penso, pensar enquanto vejo, e não posso lhe ouvir ao mesmo tempo que tento abraçar o mundo. Fique quieta, sim. A realidade ia acontecendo nos meus pensamentos conforme eu caminhava para entendê-los, e compreender também por que havia feito o buraco. Tentei ver o que havia na outra sala, era o escritório, o computador e a escrivaninha tinham um ar pesaroso naquela atmosfera apagada, quase sem iluminação, a única que chegava era a que passava pelo rombo. Notei como aquele feriado em casa estava me prendendo ali, a forma como me tornava inerte e sem ambições conforme ansiava por uma vida mais pacata dentro do lar. Não queria mais essa solidão esporádica, um pouco com a mulher, um pouco no quarto. Eu deveria sair, ir beber nos bares e cair sobre as poças das chuvas que varrem os miseráveis e patifes, meu espírito sussurrava a mim que fosse buscar o veneno fresco em forma de cicuta sobre a relva orvalhada, mas antes eu escreveria um ensaio para divagar sobre as questões que atormentam qualquer humano, coisas como felicidade, culpa, incompletitude e a falta de sexo nos sábados à noite. Eu contornaria meus próprios problemas, como o devedor astuto que por muitas vezes fugiu do agiota, encolhendo-se e correndo. Mas então, agora, devo caçar os corvos e dançar com as raposas, que também intento caçar, tudo que caminhar e respirar será presa para mim e essa língua afiada, é um sentimento agudo que sinto quando penso na mudança que tenho que fazer para me tornar glorioso, redirecionar as rotas e os ventos e rezar para que sejam o bastante. Talvez devesse começar tudo de novo. Do ponto de partida. Peguei o martelo, vou subir a montanha e destruir meu criador, verei se dele sai algum novo caráter mais apresentável, preciso de algo para o baile de gala, uma aparência que transcreva a loucura que me tornei.

sábado, 30 de outubro de 2010

décima primeira hora

A noite passou lentamente após os primeiros sinais do estranho som atrás da porta de entrada, na sala um pequeno silêncio amontoava-se nas quinas da parede, com o relógio da cozinha contando a décima primeira hora lúgubre, a da noite, os carros pareciam tão distantes na rua que o ruído das engrenagens soava como se estivesse movendo-se para longe no céu noturno. A própria essência da casa estava alinhada com as propensões do instante, já nenhum corpo caminhava, eu estava no sofá atento a qualquer ação que se desenrolasse, o barulhinho tilintando por trás da madeira, o vão da sala sob a porta guardava um breve mistério, algo ali se escondia, talvez por descuido, ou quem sabe, por emboscada. Imaginei ser uma ladrão, possivelmente um bem baixo, tentando destravar o segredo, ou um assassino que, sem perguntar, atiraria contra meu crânio pálido sob a luz frágil da lamparina. Poderia ser um bêbado que por sorte do destino veio ter seus sonhos ébrios na fachada de casas desconhecidas, o cheiro de álcool seria inconfundível, podia até conceber sua barba grisalha um pouco molhada de rum, esparramada no concreto. Nada contrariava a opção de ser a polícia em seus distintivos sobre a farda, alguém os chamou pensando haver visto aqui a ocorrência de algum crime ultrajante, sem precedentes - mas esse pensamento sujeitava-me ao do bandido e fiquei então impassível diante da dúvida, mas torcia pela salvação, na melhor das hipóteses.
Sem quase dar alerta, num sobressalto agourento, um rato correu esgueirando-se pela soleira, foi uma visão terrível, porém aliviante, era só um roedor, nada mais, nada menos. A dúvida desfez-se e agora, pela primeira vez na noite, poderia dormir tranquilamente. Foi só um rato, no entanto, ainda, cogitei que poderia ter sido você, meu amor, ao pé da porta, pedindo para voltar, e então me perguntei por que não havia pensado nessa hipótese. Lembrei que você talvez não se sujeitasse à soleira da sala, você teria quebrado o vidro da janela e entraria sem pestanejar, provavelmente mataria-me com alguma palavra sua, daquelas bem frias como lâmina de faca. Foi um rato, mas podia ter sido você, minha querida, sim, podia ter sido você.

sábado, 16 de outubro de 2010

as fatias e as migalhas

Um fato absurdo que perambula as esquinas da realidade: 4% da população devora os outros 96%. Ainda pior, o 1% mais rico da sociedade abocanha mais de 50% do planeta. Mastiga e digere a renda, os recursos naturais, os privilégios da lei e direitos a eles outorgados exclusivamente, a educação (cada vez mais restrita a quem não pode pagar pelo valor de face), a saúde pública (apenas o coveiro está garantido, ou nem isso), o trabalho justo (este caso o Walmart tem como mister), a moradia, a liberdade em todas suas facetas - indiscriminadamente, alimenta-se dos direitos, cada vez mais básicos, das pessoas que mal tem a chance de reivindicá-los como seus.
E insistimos que tudo não se passa de uma democracia mal interpretada, é sim, uma democracia às avessas. O governo do povo tornou-se a política das portas-fechadas, do monopólio de informação, de poder de decisão acima do voto, dos resgates omissos sobre a colheita de impostos e de pagamentos enviados para a aposentadoria que não tarda, mas a dignidade tarda, dos esquemas truncados para recolhimento de verbas não endereçadas previamente; além da completa falta de impunidade que solapa a ética que os senhores destes mecanismos democráticos mesmo pregam, mas é uma teia tão bem costurada, todos prendem-se a ela, no entanto, as moscas não se soltam. O que estamos presenciando é alguma espécie de oferenda ritualística, e não fomos convidados para a festa, aliás, são claramente nossas cabeças postas à mesa, nos salões das grandes corporações, servidas ao molho chutney e com um vinho de Maipo safra 98. Belíssima combinação, afinal - só me preocupa o sutil descabimento desta história, tão sutil quanto uma tropa de cavalos num concerto de Vivaldi.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

longitude

Nesses dias indefinidos de frio e garoa frouxa batendo na janela, vem a vontade de colocar velhos planos de fuga em prática, entrar no carro e dirigir sem grandes ambições, nem precisão exata. Talvez para o sul, pelas serras e pradarias; para os rios que se encontram e as cataratas, num rugido de águas; cruzar fronteiras, através dos pampas e plantações sob correntes de vento do pacífico, acima dos Andes, na austeridade gélida imóvel, que assoma à vista das cidades próximas. Então, descer, descer, até que o deserto esteja à frente e o mundo às costas, entre os arbustos nas minas de sal a céu aberto, para a terra do fogo, na comunhão das divisas da América do Sul, no encontro das ondas do tempo remoto, quebrando-se contra a margem continental; além do frio austral que arrefece as marés soturnas e embota os ciclos regionais, no berço de neve da América.