sábado, 30 de outubro de 2010

décima primeira hora

A noite passou lentamente após os primeiros sinais do estranho som atrás da porta de entrada, na sala um pequeno silêncio amontoava-se nas quinas da parede, com o relógio da cozinha contando a décima primeira hora lúgubre, a da noite, os carros pareciam tão distantes na rua que o ruído das engrenagens soava como se estivesse movendo-se para longe no céu noturno. A própria essência da casa estava alinhada com as propensões do instante, já nenhum corpo caminhava, eu estava no sofá atento a qualquer ação que se desenrolasse, o barulhinho tilintando por trás da madeira, o vão da sala sob a porta guardava um breve mistério, algo ali se escondia, talvez por descuido, ou quem sabe, por emboscada. Imaginei ser uma ladrão, possivelmente um bem baixo, tentando destravar o segredo, ou um assassino que, sem perguntar, atiraria contra meu crânio pálido sob a luz frágil da lamparina. Poderia ser um bêbado que por sorte do destino veio ter seus sonhos ébrios na fachada de casas desconhecidas, o cheiro de álcool seria inconfundível, podia até conceber sua barba grisalha um pouco molhada de rum, esparramada no concreto. Nada contrariava a opção de ser a polícia em seus distintivos sobre a farda, alguém os chamou pensando haver visto aqui a ocorrência de algum crime ultrajante, sem precedentes - mas esse pensamento sujeitava-me ao do bandido e fiquei então impassível diante da dúvida, mas torcia pela salvação, na melhor das hipóteses.
Sem quase dar alerta, num sobressalto agourento, um rato correu esgueirando-se pela soleira, foi uma visão terrível, porém aliviante, era só um roedor, nada mais, nada menos. A dúvida desfez-se e agora, pela primeira vez na noite, poderia dormir tranquilamente. Foi só um rato, no entanto, ainda, cogitei que poderia ter sido você, meu amor, ao pé da porta, pedindo para voltar, e então me perguntei por que não havia pensado nessa hipótese. Lembrei que você talvez não se sujeitasse à soleira da sala, você teria quebrado o vidro da janela e entraria sem pestanejar, provavelmente mataria-me com alguma palavra sua, daquelas bem frias como lâmina de faca. Foi um rato, mas podia ter sido você, minha querida, sim, podia ter sido você.

sábado, 16 de outubro de 2010

as fatias e as migalhas

Um fato absurdo que perambula as esquinas da realidade: 4% da população devora os outros 96%. Ainda pior, o 1% mais rico da sociedade abocanha mais de 50% do planeta. Mastiga e digere a renda, os recursos naturais, os privilégios da lei e direitos a eles outorgados exclusivamente, a educação (cada vez mais restrita a quem não pode pagar pelo valor de face), a saúde pública (apenas o coveiro está garantido, ou nem isso), o trabalho justo (este caso o Walmart tem como mister), a moradia, a liberdade em todas suas facetas - indiscriminadamente, alimenta-se dos direitos, cada vez mais básicos, das pessoas que mal tem a chance de reivindicá-los como seus.
E insistimos que tudo não se passa de uma democracia mal interpretada, é sim, uma democracia às avessas. O governo do povo tornou-se a política das portas-fechadas, do monopólio de informação, de poder de decisão acima do voto, dos resgates omissos sobre a colheita de impostos e de pagamentos enviados para a aposentadoria que não tarda, mas a dignidade tarda, dos esquemas truncados para recolhimento de verbas não endereçadas previamente; além da completa falta de impunidade que solapa a ética que os senhores destes mecanismos democráticos mesmo pregam, mas é uma teia tão bem costurada, todos prendem-se a ela, no entanto, as moscas não se soltam. O que estamos presenciando é alguma espécie de oferenda ritualística, e não fomos convidados para a festa, aliás, são claramente nossas cabeças postas à mesa, nos salões das grandes corporações, servidas ao molho chutney e com um vinho de Maipo safra 98. Belíssima combinação, afinal - só me preocupa o sutil descabimento desta história, tão sutil quanto uma tropa de cavalos num concerto de Vivaldi.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

longitude

Nesses dias indefinidos de frio e garoa frouxa batendo na janela, vem a vontade de colocar velhos planos de fuga em prática, entrar no carro e dirigir sem grandes ambições, nem precisão exata. Talvez para o sul, pelas serras e pradarias; para os rios que se encontram e as cataratas, num rugido de águas; cruzar fronteiras, através dos pampas e plantações sob correntes de vento do pacífico, acima dos Andes, na austeridade gélida imóvel, que assoma à vista das cidades próximas. Então, descer, descer, até que o deserto esteja à frente e o mundo às costas, entre os arbustos nas minas de sal a céu aberto, para a terra do fogo, na comunhão das divisas da América do Sul, no encontro das ondas do tempo remoto, quebrando-se contra a margem continental; além do frio austral que arrefece as marés soturnas e embota os ciclos regionais, no berço de neve da América.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

entorno

Atrás da vidraça empoeirada pelo vento da última manhã, que, hoje, nas ruas arrastava as folhas secas do último verão, eu a vi em seu movimento solitário, num pequeno vôo com um vestido tão solto que senti vontade de segurá-lo em torno do corpo esbelto para que não esvoaçasse tanto. As mãos que encaminhavam frutas à cesta, perto do jornaleiro, na banca do verdureiro, eram finas e pareciam macias, colhendo o café-da-manhã no pomar da cidade. Eu bebia um copo de café e a olhava, sentado sobre a escrivaninha, esperando a ordem dos acontecimentos sucederem maiores expectativas. Mas quando a vi chegando nos seus pés em sandálias, que tocavam fracamente o chão ríspido, parei de prestar atenção às horas e o que quer que seja que estivesse aguardando. Um ar de troça infantil e malícia quimérica misturavam-se em seu sorriso farto, com delicadeza insultuosa marcava as frases das conversas que tinha com as senhoras sentadas nas escadas dos condomínios. Inebriante sua forma no tempo, o espaço que ocupava ganhava ares de opulência. Ah, e como era imperfeita!, Deus, quanta imperfeição pode haver nos gestos de uma mulher? Nela inscrevia-se a essência do que a fazia inteira e imperfeita, além de todas as outras que por ali passavam no mesmo instante - a mulher irrepreensível nos pormenores e, também, nos grandes pedaços que a completavam em tudo que era.
Ali, sentado à janela, olhando-a, quase inerte, quase sem piscar, num ato de pegar o copo sobre a mesa, que equiparado a qualquer outro dela era beligerante e atroz, eu me imaginava em uma vida lá fora, caminhando atrás dela, contra o vento e os papéis que adejavam no ar - uma vida unida a minha. Uma troca de olhar, um riso disfarçado, a conversa hesitante e, então, o convite. Daí em diante, as cores seriam novas, iríamos ao cinema, veríamos algum romance, alguma comédia, conversaríamos no café, eu a levaria até à porta de casa, e num gesto de despedida, nos beijaríamos. Encontraríamos-nos por cem vezes, depois mais cem, juntos em viagens para lugares que o desejo nos faria conhecer, as palavras à noite sob o cobertor, carinho, sexo, a confiança mútua, a proposta, o noivado, o casamento, filhos, uma casa, um cão, contas para pagar, compromissos, discussões, perdão, reconciliações; o dia-a-dia ao lado da mulher que amaria, até que a loucura viesse, ou a velhice sobrepujasse, e nos tomasse, em assalto, inteiramente. Numa descarga de segundos, pensei nessas tantas cenas como fotos viradas num álbum muito grande, porém exibido como num curtametragem, tão veloz, que os olhos, ao se fecharem e abrirem-se novamente, vislumbrariam apenas "o fim" na tela escura.
Passei a vista pela rua, após esse pequeno lapso de consciência, e ela já estava tão longe em seu caminho, virava a esquina da feira para se perder de mim, e do meu pensamento distante, onde ela também já se perdera. Escutei os passos no corredor, e isso me causou uma certa expectativa, não era ninguém. A manhã nublada seguia seu ritmo aprazível, com tumultos de gente pululando pelas curvas, aves gorjeando, o velho levando seu cão para passear; na calçada, do outro lado, um grupo de meninas de cabelos presos passou e fez graça a outro bando de meninos colegiais - essa era a mesma cidade em que carros passavam com indiferença ao grito das mães chamando os filhos para o almoço, enquanto o sinal da escola zunia convocando crianças para as classes bolorentas; os passos da gente no concreto mal acabado que levavam para lugares tão estranhos a mim: no meio fio, nos botecos, nas linhas de metrô, em escadas para qualquer entrada, ao fim do dia, as luzes podiam acender novos humores.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

herança

- Não olhe agora, mas se tentar ver o jardim pela janela, vai enxergar as mãos embrutecidas que colhem as rosas.

E quando ouvir a batida seca na porta, vai ser alguém trazendo um presente que você não quer aceitar, mas já sabe, não se pode negar uma ou duas cortesias, por compaixão, simpatia ou um pouco de baboseira. Logo irá perceber como o caule é uma mentira, as folhas não respiram, estancadas pelos plásticos airosos de supermercado, no ponto mais frágil, a pétala resvala moribunda, vermelho pálido, murchando à vista das crianças na calçada - elas não sabem, no entanto, é nítida a solenidade do momento, nada pode negar esse ritual. Tão longe do solo, desperdiçada sua atenção, a raíz é um voto quebrado, a promessa partida por um gesto leviano, que levou consigo um bocado de esperança e não trouxe mais nada de fértil.
As cartas que chegam sob a porta são deixadas pelas mãos secas do homem-comum, lavram os textos do papel e os jogam para perdê-los nas bolsas de couro viajantes, ao encalço das caixas metálicas depositárias. Me dê uma pitada desse ânimo que você põe na voz ao falar a respeito da sua auto-estima, que eu lhe mostro o rancor escondido por anos e anos em cada fresta das paredes de um lar. Ao ler as palavras, é perceptível a ameaça que trazem consigo, elas ainda vão derrubar a casa de dentro para fora, com os moradores aqui. A culpa depositada pelos cantos ruirá sobre nossas cabeças, para que então a casa se torne um naufrágio, sepultando-nos sob a água e sob os medos, de um lar de uma família inconsumada. E o que haverá para ser dito uns aos outros será silêncio.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

ltda

Eu vivo a metodologia dos tubarões, com uma gravata de fibra de carbono e um aperto de mão eletrônico, ainda assim há compaixão na minha voz quando falo sobre liquidez e especulação. Quando você perguntar sobre mim, não pergunte sobre mim, vamos falar sobre meu portfólio, que está em alta, com mais ações no mercado de capitais, eu abri uma nova franquia, remodelei as estratégias para maior rentabilidade, refiz a maior parte das metas para encaixar na anual. Vou explicar um pouco sobre minha vida, veja, e aprenda, como ajustar lucros e pagar menos impostos, esse é o caminho, um caminhão de dólares - a tarifação alfandegária está cada vez mais abusiva, vou lhe mostrar a dedução contábil, que é o método dos lagartos. Já lhe falei das minhas virtudes? Acompanhe como faço esse cálculo bater, os juros estão estipulados, mas repare como eu posso colocar um adicional a curto prazo, pronto!, os valores futuros estão ajustados, é só esperar pela receita no balanço. Não perca essa chance. Entre no meu quarto, olhe o armário cheio de parafernálias, que não sei onde vou usar, mas saíram pelo melhor custo, você sempre pode pechinchar, o segredo é sempre agradar os acionistas, você sempre pode comprar mais, tudo de última geração: LED high definition digital smartphone wireless. Se você tentar seguir o meu conselho, me dê um feedback, vamos fazer um brainstorming para projetos inovadores, teremos um canal com o consumidor, realizar auditorias e criar vários processos em rede, seremos os melhores amigos de emails internos, vamos crescer juntos, 40% ao ano.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

divisas

Já prepara a cara de pedir favor, pois acho que estou prestes a ouvir você chamar os cachorros de volta, que eram nossos, agora é meu e seu, cada coisa repartida sem segredo, no entanto escancarada para ser deduzida pelos contadores e advogados. Quando apagar a luz, a gente sabe que está sozinho no escuro, e isso eu não tenho que dividir mais, nem essa sensação do sopro que entra por debaixo da coberta, pela fresta que deixei aberta; não, nada disso vai ser esmigalhado.
Certa vez, quando assobiávamos o mesmo barulho, chegamos a dividir as mesmas palavras, e agora até elas estão em malas diferentes, separadas com etiquetas onde se inscrevem nomes remarcados por um tipo de estranheza, assim, quando se olha para algo que não se pode compreender, porém só se pode olhar e acenar com a cabeça concordante.
Preto, branco, verde, branco, vermelho, branco, azul - as meias da gaveta com as cartas por baixo, que serão recordadas e guardadas por um tempo, até que o esquecimento carregue-as para algum incêndio. Hoje, o que se acaba tende à guerra, pilhar e fazer espólios até do amor, da amizade, e de sentidos ainda menores.
Não me interprete mal, quando olhei, enxerguei com meus olhos, não com os seus, então não se engane, não sou tão condescendente assim; vejo as arestas que você tentou podar, o corte profundo nos dedos que deixaram sua marca. Como posso acreditar que por trás de um rosto tão encardido há um sorriso perdido, que não existe mais, mas que foi verdade alguma vez, num bar ou de frente para uma vitrine?

sábado, 2 de outubro de 2010

metalinguagem

Dias a fio, nada à mente. Como se esperar por um feixe de nova inspiração? É tudo sem alocação, os pensamentos maream indefinidamente, as ideias não crescem longe de qualquer sol. O que tento gritar, apaga a voz rouca, e vejo como tudo está perdido, pelo menos por enquanto. Ao escrever, saem-me os borrões, palavra grotesca, sem afago, sem ódio, é somente banalidade mal escrita. Não é falta do que ter o que dizer, pois isso sei que há muito, vejo que é o não saber como escrever, melhores modos de trazer a língua ao papel, cuspir as linhas em sua ordem correta de forma que soem como a frase soa no crânio - a sentença perfeita, não a disforme que consigo escrever. E quantos não são estes miseráveis que carregam um livro no peito, e que não podem ditá-lo às mãos? Ah, isso é também o que nos faz desfeitos.