quinta-feira, 7 de outubro de 2010

herança

- Não olhe agora, mas se tentar ver o jardim pela janela, vai enxergar as mãos embrutecidas que colhem as rosas.

E quando ouvir a batida seca na porta, vai ser alguém trazendo um presente que você não quer aceitar, mas já sabe, não se pode negar uma ou duas cortesias, por compaixão, simpatia ou um pouco de baboseira. Logo irá perceber como o caule é uma mentira, as folhas não respiram, estancadas pelos plásticos airosos de supermercado, no ponto mais frágil, a pétala resvala moribunda, vermelho pálido, murchando à vista das crianças na calçada - elas não sabem, no entanto, é nítida a solenidade do momento, nada pode negar esse ritual. Tão longe do solo, desperdiçada sua atenção, a raíz é um voto quebrado, a promessa partida por um gesto leviano, que levou consigo um bocado de esperança e não trouxe mais nada de fértil.
As cartas que chegam sob a porta são deixadas pelas mãos secas do homem-comum, lavram os textos do papel e os jogam para perdê-los nas bolsas de couro viajantes, ao encalço das caixas metálicas depositárias. Me dê uma pitada desse ânimo que você põe na voz ao falar a respeito da sua auto-estima, que eu lhe mostro o rancor escondido por anos e anos em cada fresta das paredes de um lar. Ao ler as palavras, é perceptível a ameaça que trazem consigo, elas ainda vão derrubar a casa de dentro para fora, com os moradores aqui. A culpa depositada pelos cantos ruirá sobre nossas cabeças, para que então a casa se torne um naufrágio, sepultando-nos sob a água e sob os medos, de um lar de uma família inconsumada. E o que haverá para ser dito uns aos outros será silêncio.

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