sexta-feira, 8 de outubro de 2010

entorno

Atrás da vidraça empoeirada pelo vento da última manhã, que, hoje, nas ruas arrastava as folhas secas do último verão, eu a vi em seu movimento solitário, num pequeno vôo com um vestido tão solto que senti vontade de segurá-lo em torno do corpo esbelto para que não esvoaçasse tanto. As mãos que encaminhavam frutas à cesta, perto do jornaleiro, na banca do verdureiro, eram finas e pareciam macias, colhendo o café-da-manhã no pomar da cidade. Eu bebia um copo de café e a olhava, sentado sobre a escrivaninha, esperando a ordem dos acontecimentos sucederem maiores expectativas. Mas quando a vi chegando nos seus pés em sandálias, que tocavam fracamente o chão ríspido, parei de prestar atenção às horas e o que quer que seja que estivesse aguardando. Um ar de troça infantil e malícia quimérica misturavam-se em seu sorriso farto, com delicadeza insultuosa marcava as frases das conversas que tinha com as senhoras sentadas nas escadas dos condomínios. Inebriante sua forma no tempo, o espaço que ocupava ganhava ares de opulência. Ah, e como era imperfeita!, Deus, quanta imperfeição pode haver nos gestos de uma mulher? Nela inscrevia-se a essência do que a fazia inteira e imperfeita, além de todas as outras que por ali passavam no mesmo instante - a mulher irrepreensível nos pormenores e, também, nos grandes pedaços que a completavam em tudo que era.
Ali, sentado à janela, olhando-a, quase inerte, quase sem piscar, num ato de pegar o copo sobre a mesa, que equiparado a qualquer outro dela era beligerante e atroz, eu me imaginava em uma vida lá fora, caminhando atrás dela, contra o vento e os papéis que adejavam no ar - uma vida unida a minha. Uma troca de olhar, um riso disfarçado, a conversa hesitante e, então, o convite. Daí em diante, as cores seriam novas, iríamos ao cinema, veríamos algum romance, alguma comédia, conversaríamos no café, eu a levaria até à porta de casa, e num gesto de despedida, nos beijaríamos. Encontraríamos-nos por cem vezes, depois mais cem, juntos em viagens para lugares que o desejo nos faria conhecer, as palavras à noite sob o cobertor, carinho, sexo, a confiança mútua, a proposta, o noivado, o casamento, filhos, uma casa, um cão, contas para pagar, compromissos, discussões, perdão, reconciliações; o dia-a-dia ao lado da mulher que amaria, até que a loucura viesse, ou a velhice sobrepujasse, e nos tomasse, em assalto, inteiramente. Numa descarga de segundos, pensei nessas tantas cenas como fotos viradas num álbum muito grande, porém exibido como num curtametragem, tão veloz, que os olhos, ao se fecharem e abrirem-se novamente, vislumbrariam apenas "o fim" na tela escura.
Passei a vista pela rua, após esse pequeno lapso de consciência, e ela já estava tão longe em seu caminho, virava a esquina da feira para se perder de mim, e do meu pensamento distante, onde ela também já se perdera. Escutei os passos no corredor, e isso me causou uma certa expectativa, não era ninguém. A manhã nublada seguia seu ritmo aprazível, com tumultos de gente pululando pelas curvas, aves gorjeando, o velho levando seu cão para passear; na calçada, do outro lado, um grupo de meninas de cabelos presos passou e fez graça a outro bando de meninos colegiais - essa era a mesma cidade em que carros passavam com indiferença ao grito das mães chamando os filhos para o almoço, enquanto o sinal da escola zunia convocando crianças para as classes bolorentas; os passos da gente no concreto mal acabado que levavam para lugares tão estranhos a mim: no meio fio, nos botecos, nas linhas de metrô, em escadas para qualquer entrada, ao fim do dia, as luzes podiam acender novos humores.

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